A Jaqueta Azul

Esta história vive com todos que passaram pelo nosso antigo sebo. Dizem que é lenda, mas eu sei que não é. Sou a esposa do antigo dono. Vi aquele lugar
consumir não só os livros, mas também as pessoas que o habitavam. Esta é a verdade que
ninguém quis ouvir.

Ninguém gostava de fechar o sebo. Era uma briga para escolher o responsável pelo
fechamento. O piso de madeira rangia como se guardasse um coração vivo sob as tábuas.
O cheiro era uma mistura de mofo, papel e algo metálico, como ferrugem antiga. O estoque, um porão apertado e frio, parecia mudar de forma à medida que se entrava. A luz nunca alcançava o fundo, e havia sempre a sensação de que alguém observava de algum ponto além das sombras.

Havia um funcionário novo, vamos chamá-lo de Lucas, que fora o escolhido para o turno da noite. Contou-me que Ademar, meu falecido esposo, uma vez, lhe disse meio a risos que o único fantasma daquele espaço sombrio era o das promoções que nunca faziam. Mesmo assim, o rapaz nunca se acostumou com o silêncio pesado depois das dez. Disse que, certa vez, enquanto organizava caixas, sentiu um frio subindo pelas costas e então percebeu uma sombra azul entre as estantes. Era como se alguém estivesse parado ali, vestindo uma jaqueta.

Nos dias seguintes, Lucas começou a ouvir passos vindos do porão. Sempre o mesmo ritmo: três passos lentos, pausa, mais três. O frio acompanhava o som. Outros funcionários mais antigos já tinham contado coisas parecidas. Um deles jurava ter visto uma mulher sem os dois olhos, apenas buracos ocos, atravessar uma das salas de vidro no horário de fechar, e simplesmente fingiu que aquilo não existia, temendo que, se olhasse para trás, mãos o agarrassem. Outros diziam que, à noite, o depósito mudava, como se os corredores levassem a outro lugar. Alguns viam figuras de preto entre as prateleiras, paradas, imóveis, observando e ninguém sabia se eram sombras, reflexos ou outra coisa.

A última vez que falei com Lucas foi quando ele me contou que desceu ao porão com uma lanterna a pilha e encontrou uma velha jaqueta azul pendurada num prego, manchada no colarinho. Parecia surrada e velha. Ele contou que, ao tocar o tecido, a luz piscou e uma voz rouca sussurrou algo que soava como uma acusação “você disse que era só um susto”. 
Assustado, Lucas correu para contar a Ademar o que havia ouvido. Disse que ele ficou sério e pálido, o olhar fixo, como se reconhecesse algo que tentava esquecer. Sem dizer uma palavra, Ademar pegou a lanterna e desceu sozinho ao estoque. Lucas o seguiu, sem coragem de se aproximar demais. Contou-me que achava que era uma brincadeira do antigo chefe e que no fundo estava mais aliviado com sua presença no local, mas ao mesmo tempo sentia medo.

Lembro direitinho como o rapaz me contou que o viu, Ademar, meu pobre marido, parar diante da jaqueta e que, naquele instante, o ar ficou denso, quase impossível de respirar. A luz piscou de novo. E então algo se moveu nas sombras. Lucas descreveu o som: os três passos lentos, a pausa e mais três passos, até que a jaqueta azul começou a ganhar forma. Um rosto pálido, um olhar vazio, a garganta furada, marcada por uma sombra escura.
Ademar, o homem firme e de bafo pesado de café velho, tentou correr. Mas, segundo
o rapaz, as caixas caíram sozinhas bloqueando a escada. "O velho berrou, gritou. Um grito
longo, alto que parecia vir não da boca, mas do fundo da alma", me contou ele. Medo, reconhecimento, decepção… e então sumiu nas sombras. Lucas disse que ficou paralisado, ouvindo apenas o som dos passos e o eco do grito se desfazendo no escuro. Disse que foi horrível ouvir aquilo, como se o próprio prédio estivesse devorando alguém.
Lembro de saber sobre o ocorrido no outro dia, quando a polícia chegou. O estoque estava vazio. O corpo de Ademar nunca foi encontrado. Apenas a jaqueta azul, cuidadosamente dobrada sobre o balcão, já aparentava um tecido com vida, macio, limpo e estranhamente atraente para uso.

Depois disso, o sebo nunca mais foi o mesmo. As luzes piscavam sozinhas, os livros caíam
das prateleiras, e os poucos funcionários que restavam pediam para sair. Um deles, o mais
sensível, voltou chorando certa noite, dizendo que sentia alguém soprar em seu pescoço e
ouvira páginas sendo folheadas de um livro sozinho no chão frio. Até mesmo um gato apareceu morto certa manhã, o corpo contorcido, duro, olhos arregalados, como se tivesse visto algo que a mente não pôde suportar.

Lucas foi o último a sair. Ele me contou semanas depois que às vezes passava em frente ao
sebo e via, pela janelinha do porão, um brilho azulado refletindo nas paredes. As pessoas
diziam que era só o reflexo da rua, mas ele jurava que não era. Disse que quando fechava
os olhos e deitava para dormir ainda ouvia a voz sussurrando “era só um susto”.
Pobre rapaz. Pobre Ademar. Talvez o susto nunca tenha acabado, apenas tenha mudado
de dono.

Descobri mais tarde que antes de ser o nosso estimado sebo Entre Linhas, aquele prédio
abrigava uma antiga fábrica de cosméticos. Uma empresa que, nos anos 50, realizava
“testes clínicos” em pessoas contratadas. Quase todas pobres, sem família, esquecidas que se submetiam a estes teste a troco de algum dinheiro. Poucos sobreviveram aos experimentos e os corpos nunca foram encontrados. 

O antigo dono desta fábrica? Um homem da família de Ademar, o que me deixou bastante
surpresa, no fim das contas. E pensar que eu nunca soube dos segredos sombrios do meu marido, mas sei que a antiga fábrica que testava pessoas estava ligada à sua família
peculiar. E disso tenho muitas outras histórias que infelizmente fiquei sabendo depois deste ocorrido. Histórias que escreverei aqui futuramente. Histórias que me arrepiam e me desagradam. 
O sebo não existe mais, mas o porão do antigo depósito de livros ainda segue lá:
frio, com pouca luz, intacto. Talvez as vozes que ainda ecoam no porão não sejam apenas
lembranças… mas cobranças.

Relato deixado por E. M., viúva de Ademar, proprietário do antigo sebo, em outubro de 2001.

Equipe Traça, 24 de outubro de 2025

A Jaqueta Azul
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