G.H. e a barata

Esses dias aconteceu algo curioso por aqui no acervo da Traça. Encontramos uma barata morta perto da seção de literatura brasileira. Nada alarmante, até porque cuidamos com atenção a limpeza e isso não é algo comum. Mas mesmo assim, foi automático, alguém olhou e disse o que todo leitor de Clarice pensaria em silêncio: GH.

Quem já leu A Paixão segundo G.H. sabe que pra Clarice a barata nunca é só uma barata. Ela vira confronto, espelho, limite. Viagem. Fluxo. Um encontro estranho e íntimo com aquilo que a gente prefere não olhar de frente. Não fica claro quem morre ali, quem vive, quem nasce ou quem fica, se a barata ou a própria GH depois do choque de realidade. Talvez essa seja justamente a graça e o incômodo.

Clarice tinha esse talento raro de pegar uma cena banal e transformar em abismo. Ela mesma avisava logo no início do livro que não era uma leitura simples. Dizia que gostaria que fosse lido por pessoas de alma já formada, por quem entende que certas aproximações acontecem devagar, com esforço, passando até pelo oposto do que se busca. E que apesar de tudo, o livro não tirava nada de ninguém. Pelo contrário. Dava uma alegria difícil, mas ainda assim, alegria.

Tem também uma história que Clarice contava em entrevistas e que sempre volta à nossa cabeça. Uma vez, uma menina do ensino médio leu A Paixão segundo G.H. e disse que o livro tinha virado seu livro de cabeceira. Pouco depois, um professor formado contou que leu e não entendeu nada, que achou aquilo uma viagem estranha envolvendo uma barata. A autora achou graça. Talvez até ela mesmo não compreendeu, mas soube sentir quem escutou suas palavras escritas.

Clarice faleceu em 9 de dezembro de 1977, um dia antes de completar 57 anos. Dezembro sempre traz essa lembrança. E é curioso pensar nela justamente agora, nesse mês de encerramentos, balanços, Natal chegando, quando a gente costuma olhar mais pra dentro e tentar entender o que fica do ano.

Coincidência ou não, encontramos essa baratinha morta e lembramos de GH. E de forma natural, questionamentos dignos surgiram a partir disso. E se tentássemos entender o que é ser barata? Uma barata perdida num acervo, guiada apenas pelo instinto, tão distante da nossa compreensão? Ou não. E se caíssemos nessa curiosidade quase psicodélica e dilacerante, como GH caiu deixando os pensamentos intrusivos tomarem conta indo longe? Será que dá pra revisitar passado e futuro numa viagem existencial provocada por encontros tão pequenos e inesperados como esse? Seria esse encontro uma experiência visionária subestimada? Já estou viajando aqui. Ai, ai, Clarice...

Abaixo, algumas edições de A Paixão segundo G.H., de Clarice Lispector, que já passaram pelo nosso acervo.




G.H. e a barata
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