Postado por Rabujo no antigo Diário da Traça, em 01/11/2021 às 18h39
Hoje trago de volta um texto que publicamos há algum tempo, com um pequeno adendo. Ele trata de um tema sempre atual e espinhoso: o difícil problema da avaliação de livros usados.
Essa pergunta, “Quanto vale um livro usado?”, parece cada vez mais difícil de responder.
Aqui vai um texto antigo da Carmen, que continua essencialmente atual. Na verdade, as condições até pioraram um pouco. A ascensão da Amazon e de outros marketplaces comprimiu os preços dos livros usados ao criar uma concorrência feroz e muitas vezes desleal, colocando no mesmo saco empresas estabelecidas, com custos trabalhistas e fiscais, e empreendedores totalmente informais, que operam a partir da garagem ou da sala da família. Não podemos esquecer que as próprias editoras, já estranguladas pelos grandes mercadores (porque livreiros não são!), também vendem livros nesses espaços, praticando os preços do desespero.
Carmen diz:
“Creio que o problema mais espinhoso da profissão de sebista é a compra. Pagamos pouco pelos livros, geralmente muito menos do que as pessoas esperam. Muitas vezes faço minhas ofertas com certo constrangimento, quase com vergonha. Afinal, estou levando parte da história das pessoas, oferecendo relativamente pouco em troca. Quem está vendendo lembra-se de quanto foi difícil comprar aqueles volumes todos, do quanto eles pesaram no bolso, dos sacrifícios muitas vezes necessários. Sabem da qualidade de alguns, do caráter de clássico de outros, do quanto aqueles foram úteis. Sabem também do preço dos livros novos, sempre caros. Situação ainda pior é aquela em que as pessoas contam com os livros como um verdadeiro tesouro, uma reserva de valor a ser utilizada quando preciso. E, neste momento, nós livreiros oferecemos quantias modestas.
Os motivos dessa dissonância são muitos. Livros que não são mais vendáveis, edições novas claramente superiores e desatualização das antigas. Muitos livros realmente envelhecem, perdem a utilidade, não passam mesmo de papel velho. Medicina, tecnologia de informação e administração são áreas especialmente vulneráveis ao fenômeno. A literatura também tem seus modismos, certos autores são esquecidos por longos períodos, outros somem para sempre. Mas há outras razões, e mais fortes. São as razões ligadas ao próprio funcionamento dos sebos. Sebos não vendem livros, mas sim a possibilidade de você encontrá-los. Ao comprar um livro em sebo, você não está pagando pelo papel de que ele é feito, mas sim o serviço do sebista. Você está remunerando o trabalho de selecionar, estocar e disponibilizar o livro. Sebos operam em pequena escala, vendem pouco, mas são obrigados a manter grandes estoques. O tamanho do estoque também ajuda a entender por que alguns livros que foram bestsellers em algum momento caem tanto de preço logo depois. É simples: se já temos muitos exemplares em estoque, não temos interesse em adquirir mais alguns. Esses livros têm, na verdade, um valor negativo para nós: ocupam espaço, demandam manipulação e não serão transformados tão cedo em receita. Ainda por cima, esses estoques são habitualmente pagos à vista ou em prazos curtos. É a pequenez da escala dos sebos a origem do alto “spread” entre preços de compra e venda.
Um exemplo ajuda a esclarecer. Imaginemos um pequeno sebo, com um acervo de 10.000 volumes. O giro mensal deste estoque dificilmente supera os 5%, o que significa que serão vendidos em torno de 500 livros. Se considerarmos um preço médio de R$ 20,00, teremos vendas de R$ 10.000,00. Custos fixos como aluguel, energia, telefone e Internet (vital como referência para preços) não ficarão abaixo de R$3.000,00. No mínimo dois atendentes são necessários, mais R$2.000,00. Impostos e outras pequenas despesas consomem mais R$1.000,00. Restam ainda R$4.000,00. Vamos supor que nosso intrépido sebista precise de R$3.000,00 para sobreviver e pagar outros custos não contabilizados aqui. Sobram tão somente R$1.000,00 para aquisição de livros, o que lhe permitirá repor o estoque apenas se pagar míseros R$2,00 por exemplar vendável.
A simulação acima ainda é muito generosa. Não estou contando com as perdas, causadas por roubo (muito comum em sebos), umidade, acidentes ou alguma traça mais ousada. Não citei ainda a sazonalidade: no verão as vendas são muito pequenas, talvez menos da metade dos meses melhores, como março, abril e agosto. E há ainda outros custos, muitos outros: custos de reparação e manutenção de livros, contabilidade, segurança, despesas financeiras, limpeza, divulgação, remédios para alergia... Em sebos maiores ou que operem na Internet, as condições são um pouco diferentes, mas a equação é muito semelhante. Uma grande operação na Internet (como a Traça!) é muito cara e as margens são ainda mais apertadas. Um sebo que opere através de marketplaces pode entregar facilmente 20% da receita aos intermediários. Portanto, caros amigos e clientes, não nos queiram mal... não somos assim tão gananciosos.”
Pois é. No fundo, como sempre, é uma questão que a sociedade tem que decidir. Queremos manter as pequenas livrarias e sebos ou vamos entregar tudo aos grandes mercadores e aos pequenos comerciantes informais?
Mesmo passados alguns anos desde que a Carmen escreveu esse texto, pouca coisa mudou, talvez apenas para pior. A equação continua dura e o dilema, o mesmo: o quanto vale, de fato, um livro usado? E mais que isso, quanto vale manter vivo o ofício de livreiros e sebistas?