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EXPOSIÇÕES da TRAÇA                                     

      


 

 SOBRE A MADRUGADA

Paula ramos

 

"Pontualidade é defeito de burgueses. Marcar uma entrevista para as 8 e chegar às 8 é uma coisa absurda e condenável. Ninguém, absolutamente ninguém, que se preze de ter bom-gosto, entrará antes das 11 num baile que principie às 9 horas.

“Madrugada” é assim. Perfeitamente civilizada e revista de linha, não quis sair no dia fixado. Fez-se mais desejada, mais preciosa... Sai hoje, catorze dias depois do que marcara.

George Brummel, rei da elegância no seu tempo, era assim que fazia. E esta foi uma das razões, talvez a maior delas, que influíram no êxito social de George Brummel. “Madrugada”, imitando-o, só poderá lucrar. “Ainsi soit-il..."

 

 

Foi dessa forma, explicando o atraso do lançamento apenas por um capricho de estilo boêmio, que a revista Madrugada se apresentou ao público leitor. Trazendo na capa uma ilustração de Sotéro Cósme, um dos melhores traços art déco da época, o magazine ganhou as ruas em 25 de setembro de 1926. Não durou três meses. Seu último número, com texto laudatório prevendo o epitáfio, circulou com data de 4 de dezembro daquele mesmo ano. Foram apenas cinco edições.

 

O precoce padecimento não fugiu ao que parecia ser uma regra daqueles idos: a vida curta das publicações. Isso acontecia ora devido ao escasso público, ora à falta de anunciantes, ora ao primitivo sistema de distribuição. No Rio Grande do Sul, em particular, apesar de todas essas dificuldades, desde o século XIX havia um histórico de investidas no setor. Athos Damasceno Ferreira, em Imprensa Literária de Porto Alegre no Século XIX, aponta que entre 1856 e 1899 circularam na capital gaúcha 90 títulos de jornais e revistas apenas de conteúdo literário (FERREIRA, 1975). Quase todos estavam ligados a agremiações que buscavam, por meio dessa iniciativa, um espaço de afirmação coletiva, legitimidade social e construção de identidade. É o caso dos impressos relacionados aos estudantes da Faculdade de Engenharia, aos clubes de jovens escritores, aos apreciadores do simbolismo, entre outros (MARTINS, 2001). Muitos desses títulos não chegavam a completar um ano, mas é interessante perceber que havia empreendedores e condições, mesmo que precárias, para tal aventura.

 

De certa forma, essa efemeridade referencia o momento de profundas mudanças que vivenciava não somente a sociedade brasileira, como todo o mundo ocidental. Em termos de Brasil, o final do século XIX é marcado pela abolição da escravatura e pelo advento da República, aspectos que, por si só, engendram toda uma dinâmica social diferenciada. Para distinguir o novo momento do país, muitos intendentes assumiram a remodelação das cidades, a começar pelo Rio de Janeiro, então capital federal, que nos primeiros anos do século XX passou por uma expressiva reforma urbanística, encabeçada pelo prefeito Pereira Passos. Em Porto Alegre deu-se o mesmo, porém mais tardiamente. Em meados dos anos 20, os cidadãos assistiram à abertura de frondosas avenidas, à criação de praças e à implantação da rede de iluminação pública nas áreas centrais, entre diversas outras melhorias.

 

Foi também na passagem do XIX para o XX que o mundo viu surgir novos meios de locomoção e de transmissão, que pareciam definitivamente encurtar as distâncias. No ambiente privado, produtos inovadores como o vaso sanitário com descarga automática e a pasta dentifrícia alteravam o cotidiano da população, enquanto que os parques de diversão, a fotografia e, sobretudo, o cinematógrafo, com suas imagens animadas, encantavam legiões.

 

Todas essas transformações aparecem noticiadas, comentadas e fartamente ilustradas na revista ilustrada, impresso do momento, condensado, ligeiro e de fácil consumo. O grande escritor português Eça de Queirós já comentava, em texto de 1897, sobre o que esse tipo de publicação representava naqueles idos...

 

 

Tão profusa, e complicada, e tumultuária, e rápida se tem tornado a vida moderna que, se os fatos dominantes não fossem flagrantemente apanhados em imagens concretas, e fixados em resumos límpidos, nós teríamos sempre a aflitiva sensação de irmos levados num confuso e pardacento redemoinho de ruído e poeira. A revista é essa dedicada amiga que destaca da massa sombriamente movediças cenas e os atores que, por um momento, merecem risos e lágrimas.

 

 

A presença da revista no dia-a-dia dos brasileiros passou a ser constante com a entrada do século XX. Um dos fatores que mais contribuiu para a sua significativa expansão foi a escalada de um balbuciante público leitor, o feminino. Beneficiadas com as políticas de alfabetização, as mulheres, antes alijadas do sistema de consumo, transformaram-se no público-alvo da maioria dos magazines, que passaram a divulgar informações, serviços e produtos de interesse desse novo consumidor.

 

Por outro lado, o advento da linotipo, o aprimoramento das técnicas da cromolitografia, o acesso a novos e ágeis maquinários para impressão e a progressiva melhora do papel produzido no país asseguraram o crescimento que a indústria editorial experimentaria entre as décadas de 10 e 30 (HALLEWELL, 1985). Foi nesse período que o Brasil viu surgir as grandes casas editoras e publicações que marcaram gerações, como as revistas Fon-Fon!! (Rio de Janeiro, 1907-1958), Careta (Rio de Janeiro, 1908-1960), Para Todos (1918-1932), O Cruzeiro (Rio de Janeiro, 1928-1975) e a Revista do Globo (Porto Alegre, 1929-1967), entre vários outros títulos.

 

A maioria desses periódicos contava com o traço de grandes ilustradores da época, como K. Lixto, que ilustrava O Malho; Voltolino, que desenhava para O Parafuso, O Sacy, O Queixoso, A Vespa, O Pirralho; Belmonte, que deixou suas linhas acentuadas em O Pirralho, Fon-Fon!, Careta, A Cigarra, A Vida Moderna, A Garoa, Para Todos e Novíssima; Paim, que produziu para A Cigarra, A Garoa, A Vida Moderna, tendo também ilustrado vários livros; e J. Carlos, provavelmente o maior ilustrador brasileiro do século XX, autor de centenas de capas para Careta, Fon-Fon!, Para Todos, O Cruzeiro, O Malho, O Tico-Tico..., sempre com seu desenho refinadíssimo e inconfundível.

 

Nas capas das revistas, portanto, o traço por vezes debochado, elegante ou mordaz desses artistas do lápis servia de chamariz para os leitores, além de apresentar uma nova visualidade, diversa da acadêmica. No miolo das publicações, esses desenhos atraíam os olhares para os textos de consagrados ou de jovens escritores. Lima Barreto, por exemplo, durante anos escreveu para a Fon-Fon!, sendo pago por isso. Da mesma forma Olavo Bilac, que publicou artigos em O Pirralho, enquanto Oswald de Andrade, n´A Cigarra. Num momento em que praticamente nenhum escritor vivia dos livros que lançava, os jornais e as revistas representavam não apenas a possibilidade de uma certa notoriedade, como também garantiam algum dinheiro no final do mês. O gênero revista beneficiou-se, assim, dessas circunstâncias, tendo intelectuais e escritores dispostos a lhe fornecer material, quando esses não ambicionavam criar suas próprias publicações, como foi o caso dos jovens autores rio-grandenses que, em meados dos anos 20, lançaram Madrugada.

 

A revista “do Grupo”

Em 1926, quando Madrugada desponta, circulavam no Rio Grande do Sul títulos como A Illustração Pelotense, Mascara e Kosmos. Os dois últimos eram editados em Porto Alegre, então a cidade com o maior número de publicações no Estado, sendo também a maior importadora de papel. Apesar do aparecimento de fábricas de papel no país, elas ainda não supriam a demanda interna, o que obrigava muitas gráficas a importar a matéria-prima. A crise do insumo e o seu alto preço foram muitas vezes motivo de queixa e denúncia junto às próprias revistas, como aparece em artigo de Mascara, em sua edição nº 21, de 1919:

 

 

Já se tornou bem um estribilho o clamor da imprensa brasileira sobre a falta crescente de papel para impressões [...]. As revistas do Rio, de São Paulo, do Brasil inteiro, lutam com dificuldades extremas para manter a sua feição e o seu formato, umas havendo que alteraram já fundamentalmente uma e outro. As revistas de Porto Alegre não constituem uma exceção. Mascara, no entanto, sente-se feliz – de uma felicidade misturada de orgulho – em saber que pode enfrentar com desassombro a carência atual de papel, sem que deformações venham mutilar-lhe o aspecto e alterar-lhe a feição. Lamenta, porém, que o pouco escrúpulo de alguns fornecedores deste material ameace, constantemente, a estabilidade e a vida de publicações que mereciam bem ser tratadas, já não dizemos com carinho, mas com seriedade, ao menos.

 

 

            A tensão em torno do papel era uma realidade. Foi devido a ela que Kodak, surgida em Porto Alegre em 1912, encerrou suas atividades no princípio dos anos 20. 

Embora em momento algum tenha havido qualquer manifestação, por parte de Madrugada, em relação à carência e à cotação do material, é publicada na segunda edição, sob a chamada O que se disse da Madrugada, uma carta assinada pelo leitor “C”, do jornal Diário de Notícias, que assim se manifesta:

 

 

[...] Temos esperanças que “Madrugada” vingue. É de admirar que sendo Porto Alegre uma capital de população avultada, onde a cultura literária tem se desenvolvido admiravelmente, todas as publicações do gênero aqui lutem com os maiores embaraços. A própria vida de imprensa está restringida entre nós a quatro jornais diários, dois da manhã e dois da tarde, quando em muitíssimas outras cidades do país, até mesmo algumas de população menor, há muito mais órgãos de publicidade que Porto Alegre.

Vencendo todas essas injustificadas dificuldades, “Madrugada” aí está com seu belo gesto de audácia, em caminho do dia radioso de amanhã.

Esperamos que assim seja. – C.

(Do “Diário de Notícias”). 

 

Havia, portanto, uma notória incredulidade em relação ao lançamento de novas revistas no mercado. O que não significa que Madrugada tenha sido recebida com descaso. Pelo contrário. Foram vários os elogios, muitos dos quais reproduzidos na seção de “cartas” da revista. Na edição nº 5, ênfase para a manifestação enviada pelo prestigiado magazine carioca Para Todos:

 

 

Moderna, elegantíssima, com um jeito de rapariga que nem está ligando a morte de Rudolph Valentino, apareceu em Porto Alegre uma revista. Chama-se “Madrugada”. E vem lindamente acompanhada. Pertence à turma na qual sorriem, pensam, dizem e fazem coisas J. M. de Azevedo Cavalcanti, Theodemiro Tostes, Augusto Meyer, João Sant’Anna, Dr. Miranda Netto, Sotéro Cósme. “Madrugada” é tão bonita, tão inteligente, que excita o bairrismo dos seus patrícios afastados das cismas do Guaíba e dos crepúsculos daquele céu sem fim.

Vendo-a, mostrando-a aos outros, cada um diz, vaidoso: “É da minha terra... Ela nasceu lá onde eu nasci...”.

 

 

O nascimento conceitual de Madrugada se deu na mesa cativa que um grupo de velhos amigos e jovens literatos mantinha no Café Colombo. Faziam parte do “grupo” Augusto Meyer, Theodemiro Tostes, João Santana, Miranda Netto e J.M. de Azevedo Cavalcanti, que assinavam a direção do semanário, além de Sotéro Cósme, responsável pela edição de arte. Um sexto elemento do “grupo” foi Paulo de Gouvêa, que não chegou a trabalhar na revista, tendo publicado apenas O Poema da Raça na edição nº 3. De acordo com Gouvêa, foi J.M., o Jean des Rues da crônica social, quem sugeriu a feitura do hebdomadário:

 

 

[...] A idéia foi recebida com toda a reserva de que era capaz a natural propensão de fugir a mais e maiores encargos intelectuais, pois que dos materiais JM se encarregaria. Mas o JM tanto insistiu, tanto batalhou, que saiu vencendo. E o problema foi discutido às avessas, pois começou pela escolha do título. E ela ficou batizada de Madrugada, nome pelo qual Peregrino Júnior e Afrânio Coutinho designaram o nosso grupo em seus livros (básicos) sobre o Modernismo no Brasil. [...] Era impressa nas oficinas da Escola de Engenharia. Um primor gráfico, digam o que disserem, inclusive o gênio do Modernismo – o senhor Alcântara Machado (vocês conhecem esse nome?) – que a tacha de ‘revisteca’. Pois essa revisteca foi a mais bem feita, a mais perfeita que até hoje se imprimiu no Rio Grande do Sul. Seu pecado foi inserir em seu conteúdo perfeito algumas crônicas sociais e tantas outras esportivas. Mas era uma concessão obrigatória, o sine qua non dramático das suas possibilidades de sobrevivência: uma publicação puramente literária não tinha chance. Olhem para os dias de hoje e me digam quantas delas existem no Brasil inteiro. E se hoje é assim, como seria tantos anos atrás? [...] (GOUVÊA, 1976: 51).

 

 

Madrugada surge, então, como a revista do “grupo”, todos jovens na faixa dos 24 anos, vindos das camadas média e alta da sociedade porto-alegrense. Nos três primeiros números, foi semanal; depois, passou a ser publicada quinzenalmente. Ainda segundo Gouvêa (1976), a parte comercial ficava, “obviamente”, por conta de J.M.

 

Em sua proposta editorial, pouco destoava dos magazines ilustrados e de forte apelo mundano encontrados na cidade, como Mascara e Kosmos. A concessão à crônica social estava expressa desde o início, no slogan que a definia: Revista Semanal de Literatura, Artes e Mundanismo.  E, de certo modo, ela era realmente uma mistura de tudo isso. Folheando-a, o leitor encontraria desde poemas, crônicas e escritos da fina flor da intelectualidade sulina, passando por participações de nascimento, noivado e casamento, anúncios da chegada ou da partida de pessoas chics para o Rio de Janeiro, para a Europa ou até mesmo para Dom Pedrito, a programação dos clubes, notas sobre congressos médicos, encontros de esportistas, entre dezenas de outros. A revista também tanto poderia priorizar, numa página, o desenho apurado de Sotéro Cósme, como poderia, na seqüência, apresentar um mosaico de fotografias das jovens senhoritas, que certamente eram motivo de alguma disputa entre os rapazes da redação. E o que dizer das publicidades estampadas em Madrugada, um misto de reclames de profissionais liberais com anúncios de joalherias, automóveis, tecidos, alfaiatarias e confeitarias, chegando até mesmo ao Clube dos Caçadores, a principal casa noturna masculina da capital!

 

Madrugada nos salões

A revista era um produto híbrido e, ao que parece, seus diretores não alimentavam a menor inquietação quanto a isso. Tudo leva a crer que eles percebiam nesse convívio franco e estreito entre a cultura erudita, o mundanismo e o ambiente festivo uma possibilidade de mudança de mentalidade (GOLIN & RAMOS, 2006). Nesse sentido, uma das práticas mais estimuladas por eles foi a do sarau, que eles chamavam de “festa artístico-social”. De acordo com pequeno texto publicado no magazine, “[...] Oferecendo à sociedade elegante de Porto Alegre os seus saraus mensais, o novo semanário apresenta-se a ela de uma maneira altamente simpática”.

 

Já na edição de estréia havia um comentário sobre o primeiro sarau promovido por Madrugada, ocorrido antes mesmo de ela existir. O acontecimento tivera lugar no Club Caxeiral, no dia 5 de setembro de 1926.

 

No número seguinte, convite aberto a todos os leitores:

 

 

Madrugada continuará na noite de 16 do mês corrente a série de saraus artístico-sociais iniciada a 5 de setembro.

Um programa de arte que ela organiza com capricho, reunido à alegria das danças, há de atrair, com certeza ao Club Caxeiral a mesma concorrência numerosa e distinta que cooperou para o brilho da primeira festa. Além das caricaturas de senhoritas da nossa sociedade, traçadas pelo lápis de Cosme, haverá números de canto e música, acrescidos de uma surpresa que será a nota original do sarau.

As danças serão marcadas por um original jazz-band.

Publicaremos em nosso próximo número o programa completo dessa festa.

 

 

De fato, na edição nº 3, lá estavam as atrações do sarau vindouro, que contaria com a participação de “gentilíssimas senhoritas que acederam imediatamente ao convite”.

 

 

[...] Além dos números de declamação e canto que elas interpretarão, haverá um bailado original pelas senhoritas Irma Kunz, Elly Kuplich e Gerda Mentz, e um quarteto de cordas de Mozart, no qual figurarão alguns dos nossos mais brilhantes artistas.

 

 

O empreendimento parecia ser um sucesso. No 4º número de Madrugada, era anunciado um sarau ainda maior, a realizar-se em 6 de novembro “num dos grandes teatros desta capital” – o lugar escolhido foi o Theatro São Pedro – e tendo como destaque a apresentação, pela primeira vez, do poema lírico As Máscaras, de Menotti del Picchia.

 

No volume posterior, ampla reportagem dava conta do ocorrido, que tivera o próprio Theodemiro Tostes no papel de Arlequim, Oscar Daudt Filho no de Pierrot, e a aclamada estrela de teatro Iracema Alencar como a Columbina. Vale a pena reproduzir parte significativa desse texto, uma vez que ele permite entrever alguns dos objetivos do “grupo”, ao promover tanto a revista, quanto os saraus.

 

 

Não é a nós que compete dizer o que representou como expressão artística o festival, correspondente a novembro, levado a efeito por Madrugada no Theatro São Pedro. Cabe-nos apenas registrar o seu êxito magnífico, a viva simpatia com que o receberam e o carinhoso interesse com que contribuíram para o seu maior brilho o público e os artistas que participaram de sua realização. Este seu resultado, o único, basta para compensar-nos os múltiplos e penosos esforços despendidos para consegui-la. E anima-nos a perseverar.

Em Porto Alegre, todas as tentativas generosas que visem intercalar na cotidianidade prosaica da vida uma expressão superior de arte e de beleza, costumam perecer de início, estarrecidas, sobre a estepe gelada da indiferença geral. Os aplausos quentes que saudaram a execução do programa da nossa festa autorizam-nos a esperar um destino melhor para a longa série de tentativas audaciosas que premeditamos. Não contávamos com eles, e só podem ter o efeito de firmar-nos em nosso propósito, como um incentivo exterior, valiosíssimo, à infinita confiança que temos no êxito final da nossa aventura atrevida.

Talvez isto pareça pretensão, coisa escusável em rapazes que sabem prezar em todo o seu valor a virtude excelsa de serem jovens. Mas pode ser que não. Afeitos ao desporto emocionante de jogar cabeçadas contra o impossível, com a faculdade de resistência ao desânimo desenvolvida até ao exagero, na infatigável pertinácia de fazer, apesar das dificuldades quase insuperáveis de toda sorte, uma revista popular de arte e literatura, temos o direito de ousar alguma coisa mais.

E era preciso tentá-lo. Uma revista por si só não bastava para a realização do nosso objetivo, que devia apresentar, reunidos, num único feixe, todo o trabalho intelectual e artístico da nossa geração. E à ação da revista escapavam todas as artes que não comportam suficiente expressão gráfica ou literária. “Madrugada” devia ter um suplemento cênico, há de tê-lo.

Não parece demasiada a esperança de que não havemos de ser sempre sós, ou de que o público resista por muito tempo à inclusão, em seus hábitos de cinema, recepções e bailes, de uma festa mensal de espírito, organizada com inteligência e gosto [...].

 

 

O texto segue, comentando que há condições de se mudar a dinâmica social e cultural da província, uma vez que existe “[...] juventude bastante com que se possa contar para uma obra desinteressada e generosa [...]”. O articulista – muito provavelmente Augusto Meyer –, apesar de dizer que acredita numa mudança de mentalidade, também deixa transparecer em vários momentos um pronunciado cansaço, uma certa incredulidade. Isso é verificado, inclusive, poucas páginas antes do referido texto, num pequeno artigo sobre a atriz rio-grandense Iracema de Alencar, de renome nacional. Comentando que ela se declarava “[...] pronta a devotar os seus esforços, o seu talento e a experiência artística a qualquer empreendimento que vise o engrandecimento do teatro e redunde em benefício para a cultura do meio [...]”, o jornalista (Meyer?) escreveu:

 

 

[...] Esta serena declaração oferece todo um programa de realizações grandiosas. E se não for praticável, se não houver em nosso meio forças vivas de idealidade suficientes para levar a cabo uma obra de construção cultural, ficará a beleza da atitude que aquela frase traduz, como um exemplo de desprendimento, de coragem e de altruísmo, lições que necessitamos muito, nós que vivemos a lamentar o que nos falta, quando nunca tentamos o mínimo esforço para consegui-lo. Seríamos capazes de desejar seriamente um teatro? Temos uma atriz, a maior que o Brasil tem. E vontade?... 

 

A despeito do declarado desencanto, na mesma quinta edição, na página com sugestivo título Phtahhotpou, outra chamada para uma “encantadora festa de arte”, cujos destaques eram a repetição do poema lírico As Máscaras, de Menotti del Picchia; a palestra Quando Buda sorri, de Athos Damasceno Ferreira, ilustrada por Sotéro Cósme, e a encenação da peça Magdalena sem ser arrependida, farsa ou tragédia em meio ato, de autoria de Theodemiro Tostes, tendo como protagonista a já supracitada Iracema de Alencar.

 

Lendo toda a efusiva programação e os permanentes brados de renascimento cultural, quem imaginaria que aquele seria o último suspiro da revista? Quem, lendo-lhe os textos, vendo a chamada para a edição especial de Natal, poderia prever o seu fim iminente? Talvez apenas um leitor mais atento, percebendo uma certa melancolia no texto de Meyer, ou observando nas primeiras páginas o reclame do próprio Sotéro Cósme, oferecendo seus préstimos como professor de violino, poderia deduzir que algo não ia bem...

 

Oxigenando os Sentidos

No corpo da revista, os autores trataram de promover as manifestações culturais de sua geração por meio de instigantes textos e de um planejamento visual que primava pelo não convencional. A qualidade dos escritos era sem dúvida um ponto forte de Madrugada. Embora a maioria dos textos não seja assinada, o conjunto de exemplares que serviu de matriz para esse projeto traz várias indicações escritas a lápis e à caneta – ao que tudo indica, de autoria de Sotéro Cósme –, que apontam os responsáveis pelas respectivas seções. Assim, por exemplo, a página com o título Madrugada, reproduzindo a logotipia de capa, era de Augusto Meyer, enquanto que as notas sob a cartola Chronica, na página de abertura do magazine, ficavam por conta de Theodemiro Tostes.

 

De tom geralmente jocoso, os textos de Madrugada provocam o leitor, satirizando velhos hábitos e as tolices do cotidiano, fossem elas corriqueiras ou de caráter extraordinário, como é o caso do texto relativo à morte do astro de cinema Rodolfo Valentino:

 

 

As mocinhas cinéfilas levantaram no Rio a idéia da ereção de uma estátua a Rodolfo Valentino.

Muitos rapazes invejosos farão crítica forte ou talvez brincadeiras pesadas. Nada mais injusto! Afinal, o dinheiro é das pobrezinhas, ganho às vezes nas situações mais difíceis. Criticaram as inocentes pelas missas que mandaram rezar. Ora, para que tanta dureza!

Elas são religiosas, e quiseram denotar uma alma piedosa, caritativa. Ele era tão bonito!

Outros dirão: a estátua de Machado de Assis, que foi um grande cultor da nossa língua, que foi um dos nossos homens de letras mais distintos, ainda não foi levantada. Por esta elas não se importaram.

Pudera! O Machado foi um escritor elegante, de um humor fino, que levantou alto a nossa literatura, mas não tinha aquele olhar do Valentino. Credo! Parece que furava a gente.

Pessoas hão de dizer: a estátua do general Osório há dez anos que está para ser levantada aqui, mas não sai porque a subscrição paralisou.

Ora, Osório era um general ilustre, levou muitas vezes as nossas armas à vitória, arriscou mil vezes a vida pela pátria, mas não sabia dar um beijo como Valentino. Oh, o beijo do Valentino!

Como será bom nas noites de luar, no verão, enroscar os braços no pescoço da estátua. No inverno ainda melhor, porque a praça está deserta. É aconselhável, porém, que se levante uma grade bem alta em torno do monumento, para evitar que, como a andorinha de Wilde, amanheça alguém sem vida aos pés do Príncipe Feliz.

 

 

As moçoilas eram tema vital e constante de Madrugada, seja motivando algum deboche, como aparece de forma cristalina no texto acima, seja inspirando-lhes a admiração... E que admiração! Páginas e mais páginas da revista são voltadas aos rostinhos bonitos da cidade, às lindas criaturas, e também às forasteiras. Num exagero editorial, a coluna Passeando (J.M.?) traz ainda mais comentários sobre as diseuses que davam a graça nos cafés da cidade:

 

 

[...] Na Rosicler, a deliciosa boite, há um perfume perene de mulheres. Infelizmente vai fechar... acabar como um sonho oriental em que houve muita luz, muitas figuras lindas, muitos amores curtos, superficiais, como os reflexos que tremem nos espelhos. Há uma saudade antecipada nos olhinhos das belas habituées. Vininha de Bem, deliciosamente invernal, açambarca os olhos masculinos. E o jazz-band Marinetti diz para a rua, doidamente, suas parole in libertá....

 

[...] Será Marina Chaves? Ela é bonita como a gente, que é homem, tem vontade de ser, quando pensa que há no mundo Rodolfo Valentino e outros tipos fatais.

Olha: é a Alda Echenique. Tem uma graça frágil de boneca. E uns olhos infantis. Não é?

E depois uma ronda. Amélia Nonohay, Vininha Lemos, Julinha Leivas de Carvalho, uma ronda sem fim.

Catalogar o quê? ...Brincar de roda. E cantar com vontade:

Anda a roda, desanda a roda que eu quero colher a flor...

 

 

A partir da terceira edição, seguindo o sucesso que haviam representado as reportagens do carioca João do Rio, pseudônimo de Paulo Barreto, surgiu em Madrugada a página A Alma encantadora das Ruas, numa clara referência e homenagem ao cronista falecido em 1921 e que havia mudado a forma de fazer jornalismo no país. João do Rio, um típico discípulo de Baudelaire, foi o grande inspirador do flanêur local, lançando os diretores do magazine às perambulações pelas ruas, numa forma de perceber não somente a urbe que se modernizava, como também as novas relações estabelecidas entre ela e os seus transeuntes. Diferentemente, porém, da tradição de João do Rio, a página A Alma encantadora das Ruas é tão somente composta por fotografias. E de moçoilas, c’est sûr! Instantâneos mostram-nas na saída da igreja ou pela Rua da Praia, desfilando os chapéus e os vestidos modernos no zanzar constante pelo centro da cidade. A Rua da Praia surge, aqui, como outro personagem importante daqueles idos. Ela era a grande vitrine, o ponto de encontro da “boa sociedade” porto-alegrense, o espaço dedicado à prática do footing e celebrado por meio de textos e memórias da geração modernista. Sobre ela, Augusto Meyer nos diz:

 

 

O passeio infalível, da esquina do Café Colombo à esquina da Casa Masson, ainda reproduzia o encontro marcado numa praça ou na rua central de uma pequena cidade do interior. A Rua da Praia era como se fosse um salão de clube, de portas abertas para uma festa semanal, e onde, em obediência a um rito profano, que não devia nada aos mandamentos da sinagoga, todos iam sabadear um pouco. Todos ali se conheciam de vista ou de palavra e, se em conjunto não chegavam a constituir uma tropilha de mesmo pêlo, davam ares de primos ou contraparentes de vários graus – pelo menos de sócios ou convidados do mesmo grêmio (MEYER, 1996, p. 180-181).

 

 

Afora o texto leve e por vezes descomprometido, o elemento de maior impacto de Madrugada residia em seu tratamento visual, a cargo de Sotéro Cósme. Com capa e contracapa coloridas, a revista era impressa em papel couché e media 29,5 x 21,5 cm, variando entre 28 e 36 páginas. A capa da primeira edição, com o fundo branco e tendo ao centro uma figura humana estilizada geometricamente, bem ao gosto art déco, foi sem dúvida um choque para a época e já deixava claro que o magazine não se pautaria por um tratamento gráfico tradicional. O próprio logotipo, especialmente desenhado por Sotéro, refletia esse câmbio. Num tempo em que a logotipia mudava de acordo com o humor e o gosto do ilustrador, sendo adequado ao espaço de página que “sobrava”, Sotéro criou uma padronização que, mesmo tendo leves alterações na aplicação junto às capas, era percebida ao longo de todo magazine, como nos cantos inferiores das páginas, junto à numeração. Ao criar essa identidade, ele assumiu o precoce papel do designer gráfico, numa época antes do design, para usar a expressão de Rafael Cardoso (CARDOSO, 2005).

 

Na realidade, essa era uma prática comum às redações e editoras brasileiras. Aline Haluch, em artigo sobre o design da revista A Maçã (Rio de Janeiro, 1922-1929), e Julieta Costa Sobral, em ensaio sobre o J. Carlos designer, apontam essa constância (CARDOSO, 2005). O fato é que os primeiros designers gráficos brasileiros acabaram sendo os artistas plásticos contratados pelas casas editoriais para a elaboração de capas e planejamento de livros e revistas. Foi o que aconteceu com Tomás Santa Rosa, que assumiu e revolucionou, nos anos 30-40, a direção de arte da Livraria José Olympio (CARDOSO, 2005). Foi o que também aconteceu com a extinta Editora Globo, sediada em Porto Alegre. Como negar que se desenvolveu na Secção de Desenho da editora, coordenada por Ernst Zeuner, uma escola de design gráfico, lembrando que essa era formada substancialmente por artistas plásticos, a exemplo de João Fahrion, Edgar Koetz e Nelson Boeira Faedrich (GOMES, 2001; RAMOS, 2002)? Embora nascido de forma quase espontânea, sem arreios e tampouco normas, houve um padrão criado pelos artistas da Globo que influenciou a visualidade e o imaginário de toda uma geração no Rio Grande do Sul.

 

Em Madrugada, Sotéro antecipou a ousadia gráfica que a Globo, nos dez anos seguintes, assumiria como uma de suas bandeiras. Nas capas das edições 2 e 3, temos uma mostra de seu virtuosismo. Na primeira, referenciando a figura de São Francisco de Assis, provavelmente trabalhou com a técnica do scratchboard que dá um efeito visual semelhante ao da xilogravura, enquanto que, na segunda imagem, temos um retrato caricatural, solto no fundo branco, da senhorita Alba Pinto Pinheiro, como se estivesse triste com a chuva incessante que não parava de cair sobre a cidade e que, literalmente, pelo traço de Sotéro, riscava o seu cabelo...

 

Os grafismos requintados de Cósme definem a revista, dando forma aos personagens-síntese daqueles anos: dândis e melindrosas. A sua personalidade também está nas cartolas escritas à mão, e na opção pelos tipos de desenho mais geométrico, sem serifa. Provavelmente ele também fazia anúncios publicitários (ou estava disposto a fazê-los!), como se deduz a partir de um reclame reproduzido nas páginas finais do quinto número:

 

Para anúncios originais preparam-se desenhos na redação da “Madrugada”

Ladeira 23 – Sala 2

 

Nas duas últimas edições, Sotéro dividiu o trabalho com outro jovem talentoso artista, João Fahrion nome essencial das artes rio-grandenses, há pouco citado, e que se notabilizaria como ilustrador da antiga Editora Globo. Embora os dois tivessem linguagens bastante distintas – Cósme essencialmente gráfico e Fahrion mais pictórico –, eles primavam por uma quebra das estruturas convencionais.

 

Madrugada não vingou. O porquê, real, quem há de saber? Paulo de Gouvêa aponta os seus motivos: “[...] Apesar da ginástica exaustiva do incansável e incansado J.M, e da venda avulsa que era muito grande, as dificuldades financeiras próprias do gênero revista, além de motivos outros, lavraram a sentença capital” (GOUVÊA, 1976, p.51).

 

Com a sua dissolução, os antigos diretores acabaram integrando a equipe da Página Literária do Diário de Notícias, um espaço de discussão da nova literatura, sem esquecer das imagens alongadas de Sotéro e de Fahrion, iluminadoras do segmento.  

 

Talvez Tostes, Meyer, Santana, J.M e Sotéro não tenham conseguido, efetivamente, transformar a mentalidade provinciana, nem subverter os costumes locais, como tanto procuravam, mas nos legaram uma imagem vicejante daqueles anos 20, em que o importante mesmo era continuar, de preferência bailando...

 

 

[...] Pois se a vida é um jazz-band!... Se a vida é outro!... E toda a mágoa fica lá fora do salão, como um abrigo, uma bengala... Vamos dançar, dançar enquanto há força para mover os pés.

Maestro, príncipe! A vida é um baile. Toca...

 

 

 

Referências Bibliográficas

 

A Revista no Brasil. São Paulo: Editora Abril, 2000.

CARDOSO, Rafael (org.). O Design Brasileiro antes do Design – Aspectos da História Gráfica, 1870-1960. São Paulo: Cosac Naify, 2005.

FERREIRA, Athos Damasceno. Imprensa Literária de Porto Alegre no Século XIX. Porto Alegre: Editora da Universidade/UFRGS, 1975.

GOLIN, Cida; RAMOS, Paula. Jornalismo cultural no Rio Grande do Sul: o Modernismo na efêmera passagem da revista Madrugada (1926). Anais do IV SBPJOR, Encontro Nacional de Pesquisadores em Jornalismo. Porto Alegre: UFRGS, 2006.

GOMES, Leonardo Menna Barreto. Ernst Zeuner: Artista e Designer. Dissertação de Mestrado. Porto Alegre: Faculdade dos Meios de Comunicação Social da PUCRS, 2001.

GOUVÊA, Paulo de. O Grupo – Outras Figuras – Outras Paisagens. Porto Alegre: Instituto Estadual do Livro; Editora Movimento, 1976.

HALLEWELL, Laurence. O Livro no Brasil: sua História. São Paulo: T.A Queiroz/Edusp, 1985.

LOVE, Joseph. O Regionalismo Gaúcho. São Paulo: Edusp, 1975.

MARTINS, Ana Luiza. Revistas em Revista – Imprensa e Práticas Culturais em Tempos de República Velha (1890-1922). São Paulo: Edusp, 2001.

MEYER, Augusto. Segredos da Infância/No Tempo da Flor. Porto Alegre: Instituto Estadual do Livro; Editora da Universidade/FRGS, 1996.

RAMOS, Paula. A Experiência da Modernidade na Secção de Desenho da Editora Globo – Revista do Globo (1929-1939). 2002. 273 p. Dissertação (Mestrado em Artes Visuais). Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2002.

TOSTES, Theodemiro. Nosso Bairro – Memórias de Theodemiro Tostes. Porto Alegre: Fundação Paulo do Couto e Silva, 1989.

TRUSZ, Alice Dubina. A publicidade nas revistas ilustradas: o informativo cotidiano da modernidade. Porto Alegre – Anos 1920. (Mestrado em História). Instituto de Filosofia e Ciências Humanas – Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2002.

 

 

Paula Ramos é jornalista e doutoranda em Artes Visuais, ênfase em História, Teoria e Crítica de Arte/UFRGS. É professora junto ao Curso de Design do Centro Universitário Ritter dos Reis e junto aos cursos de Arquitetura e Urbanismo e Artes Visuais do Centro Universitário Feevale.

 

 

Detalhe da capa da primeira edição da Revsita Madrugada
Publicada em 25/09/1926
Capa de Sotéro Cósme




   

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