passando por aqui uma Antologia Poética de João Cabral de Melo Neto, em breve no sistema. Até lá, a primeira parte de "Uma Faca Só Lâmina":
Uma Faca só Lâmina
Assim como uma bala
enterrada no corpo,
fazendo mais espesso
um dos lados do morto;
assim como uma bala
do chumbo mais pesado,
no músculo de um homem
pesando-o mais de um lado;
qual bala que tivesse um
vivo mecanismo,
bala que possuísse
um coração ativo
igual ao de um relógio
submerso em algum corpo,
ao de um relógio vivo
e também revoltoso,
relógio que tivesse
o gume de uma faca
e toda a impiedade
de lâmina azulada;
assim como uma faca
que sem bolso ou bainha
se transformasse em parte
de vossa anatomia;
qual uma faca íntima
ou faca de uso interno,
habitando num corpo
como o próprio esqueleto
de um homem que o tivesse,
e sempre, doloroso
de homem que se ferisse
contra seus próprios ossos.
A obra de João Cabral é um exemplo de como a Língua Portuguesa pode ser cortante, áspera e seca, um exemplo que subverte as imagens idílicas e bucólicas sob a qual debruçaram-se diversos poetas com sensibilidade mais leve.
Vale lembrar que Vinicius de Moraes não raramente levava alguns puxões de orelha de João, que dizia que o poetinha seria um dos grandes poetas universais se prestasse a devida atenção à forma e aos cortes, maior disciplina, a Educação Pela Pedra: ao que Vinicius respondia a fim de contornar essa dor de cabeça, de João.