Nosso editorial, produzido inicialmente para uma publicação da Feira do Livro de Porto Alegre 2023:
Manifesto da Traça
Comecei a trabalhar com livros em 1986, vendendo usados no Brique da Redenção. Dali foram alguns poucos passos, nem todos seguros, e mais de uma década até chegar à Traça.
Escolhi o Bom Fim, mesmo tendo alternativas à época. Eu queria uma livraria de bairro, queria conhecer os clientes, poder escolher os livros que os alegrariam; conviver, não só vender. Porque isso, para mim, é a essência da livraria.
Uma livraria deve ser um pequeno espaço seguro. É um lugar aonde você vai para ficar em paz, escutar boa música, trocar amabilidades e alguma informação, fuçar nas novidades, exercer sua curiosidade em meio a livros antigos e a títulos estranhos, admirando as artes da edição e do texto.
Gosto de pensar na edição de livros como a conjugação de um conjunto de pequenas artes, algumas das quais fazem a graça e o charme das livrarias.
* arte do título: atrativo e informativo sem ser pretensioso, críptico ou anódino.
* arte da capa: sedutora e reveladora, legível mas não óbvia, alusiva mas não explícita.
* arte da orelha: chamativa, instrutiva e cativante, sem exagerar nas qualidades do autor ou do texto.
* arte da edição: o papel certo, a fonte confortável e elegante e os espaços criativamente distribuídos, tudo sem excessos de design oco.
Essas artes compõem a sedução da livraria tanto quanto os textos e explicam a atração de tantos clientes por mesas algo confusas e por pilhas de livros desorganizadas. É o prazer estético, a surpresa dos formatos, os assuntos inauditos, a possibilidade de prazeres ainda não desfrutados.
Uma boa medida da qualidade de uma livraria é a quantidade de livros que um cliente leva além daquele que foi buscar especificamente. Se forem muitos, significa que criamos um ambiente agradável, relaxante, em que as pessoas podem se soltar um pouco e ousar, escolher algo novo. Ou então que estamos expondo aquilo que elas desejam, mas talvez nem saibam...
Foi desse ambiente que parti para a Internet. A web é basicamente um ambiente hostil, onde a competição se dá quase que somente via preço. É um ambiente onde é impossível replicar a experiência que descrevi acima. Para diminuir essa carência, criamos centenas de listas temáticas, algumas bem originais, blog, um mecanismo de livros aleatórios e fizemos exposições de livros de interesse, mesmo sem os ter em estoque.
Daqui para a frente, vamos continuar melhorando a navegação e a usabilidade do site, as imagens e as informações disponíveis, utilizando mecanismos de inteligência artificial, robôs de software e integração com outras bases de dados.
Mesmo assim, é uma experiência muito pobre em relação à experiência na livraria real. E aí? Como fica o caso? Preço contra pequenos prazeres, quem ganha?
O preço baixo vem ganhando.
A classe média, que representa a grande maioria dos consumidores de livros, anda sendo espremida por todos os lados. A estrutura de gastos das pessoas vem sendo distorcida nos últimos anos. Além das grandes questões, como a inflação, especialmente os custos de saúde e educação, alguns itens de grande valor foram acrescentados às compras quase obrigatórias: celulares e assinaturas de serviços. Um celular pode custar facilmente mais de 1 mês de trabalho e é necessário trocá-lo com frequencia. A música que se ouve, os filmes a que se assiste e até lâminas de barbear são obtidos por assinaturas. O que sobra para gastar livremente é pouco.
Com esse quadro, a cultura do produto baratinho se instalou. Pedir pela internet é frequentemente mais barato e mais conveniente - economiza-se também o deslocamento.
E aí...temos a atuação das grandes empresas, Amazon à frente. A atuação da Amazon é um caso à parte e não vou comentar aqui. Mas essa empresa não está sozinha, pode-se comprar livros em todos os grandes varejistas e muitos marketplaces. Não quero ser processada, esses dinossauros podem pagar os melhores advogados, e também outros personagens dessa história. Vou fazer de conta que existe uma livre concorrência e seguir o discurso...
Como em tantos outros casos, a chave para a análise é o prazo considerado. A curto prazo geralmente é vantajoso comprar de um desses dinossauros. Livro barato e frete grátis! O que pode ser melhor?
Ter uma boa vida real a longo prazo, por exemplo, me parece bem melhor do que um descontinho hoje. E é disso que estamos tratando. Estamos falando da vida urbana, da teia de relações de vizinhança, de conhecimentos e amizades, de reconhecer e de ser reconhecido.
Ao fechar o pequeno comércio, especialmente as livrarias, estamos destruindo uma forma de experimentar a vida, reduzindo a amplitude de nossas experiências, limitando nossas escolhas, restringindo nossa curiosidade.
Num outro plano, a internet tornou-se uma contradição interessante. Parecia a realização do sonho dos enciclopedistas: toda a informação em um só lugar facilmente acessível a todos, anárquica e livre. Com o tempo, virou um dilúvio de dados, incognoscível e inadministrável. E aí...os canais relevantes para a maioria das pessoas tornaram-se poucos. A informação passou a ser direcionada, controlada, selecionada, homogeneizada e censurada. Alguns grupos controlam de fato a narrativa e Governos têm grande influência no que chega até o público, e como chega.
Assim, somos limitados ao que é sugerido pelas grandes corporações, mecanismos de busca e redes sociais. Aceitando esse jogo, estamos abrindo a porta para o controle social e a censura. Estamos, no fundo, abrindo mão de nossa liberdade e de nossa privacidade.
A ditadura de opinião está ali no futuro. Ou já chegou.
Quais lançamentos de livros ganham destaque, quais assuntos são debatidos ou esquecidos, quais autores ganham relevância são escolhas feitas por poucos, os mesmos que detêm o poder de afastar os proscritos. É preciso ampliar essa curadoria, descentralizar as opções, aumentar o número de atores nesse teatro. E acabar com as proscrições.
As pequenas livrarias, especialmente os sebos, são ilhas caóticas e livres. Muitas vezes refletem o pensamento de seus proprietários, mas não só. Neles são encontradas bibliotecas que pertenceram a mentes curiosas e variadas, com títulos desaparecidos, temas malditos e opiniões nada canônicas. Nos sebos ainda não existe censura e as surpresas ainda são possíveis. E aqueles lançamentos que muitos gostariam de manter no esquecimento de um site com milhões de ofertas podem estar lá, e com destaque!
Resumindo: Menos livrarias significa empobrecimento urbano e pessoal. Menos livrarias significa menos liberdade.
É uma escolha que a sociedade terá que fazer com seus pés, indo visitá-las, e com seus bolsos, comprando nossos livros.
Carmen Menezes